Processo de Seleção Exclusivo para Negros é possível? Existe Racismo Reverso?

Processo de Seleção Exclusivo para Negros é possível? Existe Racismo Reverso?

Por Letícia de Carvalho Souza

Este artigo abordará o tema mencionado com foco no subtema remuneração e salário. Afim de fornecer uma contextualização inicial, o estopim para as reflexões a serem apresentadas foi a abertura de um processo seletivo pela empresa Magazine Luiza, uma das maiores redes varejistas do Brasil (Ranking Ibevar – FIA 2020), no qual foram disponibilizadas vagas apenas para candidatos negros. Ao ser questionada, a Magazine Luiza alegou possuir em seu quadro de funcionários 53% de pretos e pardos e apenas 16% deles ocupando cargos de liderança, o que sugere a necessidade de mudança desse cenário.

Muitos foram os que afirmaram que este seria um exemplo de aplicação do que vem sendo denominado racismo reverso, ou seja, “[…] a discriminação e preconceito perpetrados por minorias raciais ou grupos étnicos historicamente oprimidos contra indivíduos pertencentes à maioria racial ou grupos étnicos historicamente dominantes”. Isso leva ao questionamento proposto pelo tema: será que de fato existe o racismo reverso?

Para o Juiz Federal Substituto da 11ª Vara da SJGO João Moreira Pessoa de Azambuja a resposta é não. Segundo ele, esse conceito representa apenas um equívoco interpretativo. Ele é autor de uma sentença advinda do Processo N° 0003466-46.2019.4.01.3500 – 11ª VARA – GOIÂNIA Nº de registro e-CVD 00003.2020.00113500.2.00724/00128, no qual um acusado negro com traços indígenas praticou e incitou a discriminação de raça ou cor, por intermédio do meio de comunicação social (Facebook), tendo feito reiteradas declarações pregando, com incitação ao ódio, a separação de raças, inclusive citando mulheres negras que se relacionam com homens brancos. Em sua rica abordagem, ele menciona, dentre outras referências, um recente julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 feito pelo Supremo Tribunal Federal:

“O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBT+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.”

 

E o Juiz continua afirmando: “[…] evidentemente que a proteção constitucional, instituída ao longo do tempo, visa essencialmente a proteger minorias discriminadas em função de sua raça, etnia, orientação sexual ou identidade de gênero, mas especialmente negros e índios. […] Nunca se fez necessária a adoção de políticas de ações afirmativas para as pessoas brancas, por não existir quadro de discriminação histórica reversa deste grupo social nem necessidade de superação de desigualdades históricas sofridas por pessoas brancas. Não existe racismo reverso, dentre outras razões, pelo fato de que nunca houve escravidão reversa, nem imposição de valores culturais e religiosos dos povos africanos e indígenas ao homem branco, tampouco o genocídio da população branca, como ocorre até hoje o genocídio do jovem negro brasileiro. O dominado nada pode impor ao dominante.”

Não se pode esquecer, entretanto, que existe uma outra face da moeda. William Douglas e Irapuã Santana do Nascimento da Silva, Juiz Federal e Assessor de Ministro no Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, respectivamente, afirmam em seu artigo com a referida temática que “[…] o racismo pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoa. Daí a impossibilidade de se cogitar uma espécie de reversão. Não é que não exista racismo reverso porque minorias não possam ser racistas: não existe racismo reverso porque todo e qualquer racismo é racismo!”.

Mais adiante, eles contextualizam a realidade da Polícia Militar do Rio de Janeiro, afirmando que em um total de vítimas da violência policial entre 2010 e 2013, quase 80% eram negras, mas que se fosse observada a estrutura dos integrantes da PM, a maioria é formada por policiais negros (51%), como exposto pelo Ministério da Justiça em seu último relatório do perfil das instituições de segurança pública. Esses dados os levaram a concluir que o racismo praticado pela Polícia é, muitas das vezes, por negros contra outros irmãos da mesma raça. Por fim, eles sustentam que “A ideia de que não existe o “racismo inverso” ou “reverso” termina por veicular uma espécie de “autorização” (i)moral para que haja um movimento de refluxo, no qual, ao invés de se extirpar o racismo, permite-se sua prática por aqueles que tradicional, histórica e majoritariamente o sofrem.”

Levando em considerações essas reflexões para o mercado de trabalho, o que se observa é as desigualdades ainda predominam por entre as tonalidades da pele. Após análise do parecer do Ministério Público do Trabalho – Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região acerca da ACPCiv 0000790-37.2020.5.10.0015 acerca da ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública da União – DPU, em face da empresa Magazine Luiza S.A., com a pretensão de impugnar seu programa de trainee 2021, que oferece vagas com exclusividade a pessoas negras, foi possível constatar que independente da diferenciação entre salário e remuneração, a situação da população negra no país não tem sido totalmente igualitária.

Se for levada em conta apenas o salário, ou seja, a importância paga pelo empregador (art. 457, §1º DA CLT), o estudo “Desigualdades Sociais por Cor e Raça no Brasil”, divulgado em 2019 pelo IBGE averiguou que, em 2018, 47,3% das pessoas ocupadas pretas ou pardas estavam em trabalhos informais, enquanto que este percentual para os brancos era de 34,8%. Ademais, em 2019, apenas 3,68% dos profissionais contratados para cargos em liderança eram negros (pardos ou pretos) no estado de São Paulo.

Quanto à desigualdade salarial, a ONG britânica OXFAM, em seu relatório denominado “A distância que nos une – Um retrato das Desigualdades Brasileiras”, de 2017, projetou que a igualdade salarial entre negros e brancos seria alcançada somente em 2.089, considerando o fato de que o IBGE, em Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc), apontou que o contingente populacional do Brasil em 2016 era de 205,5 milhões de pessoas, sendo 111,7 milhões de pretos e pardos, correspondendo a 54,9% da população brasileira. Em complemento, ressalta-se que uma pesquisa do IBGE mais recente, de 2020, apontou que a população preta foi a que mais sofreu com a desocupação durante a pandemia de Covid-19 (17,8%).

Diante disso, faz-se essencial ainda diferenciar racismo e injúria racial. O crime de racismo, já definido anteriormente, não se confunde com a injúria racial, prevista no artigo 140, § 3°, do CP, que se define como a ofensa à dignidade de um indivíduo, utilizando referências a elementos de “raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. A finalidade do agente é atingir a honra.

Apesar de existirem abordagens contrárias, percebe-se que o programa de Trainee da empresa Magazine Luiza disponibilizado apenas para negros não tem um condão discriminatório. A Lei 7716/89, criada para define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e até hoje tomada como parâmetro para tais questões, tipifica como crime em seu art. 4º “negar ou obstar emprego em empresa privada”, com prisão de dois a cinco anos. Nesse caso, contudo, não há nenhuma obstrução ao exercício de entrada no mercado de trabalho, só o que ocorre, como narrado acima, é que historicamente os negros vem enfrentando maiores dificuldades para isso e, indo além, para ocuparem cargos de liderança, um dos objetivos do programa.

Fato é que a medida adotada pela Magazine Luiza não foi tomada para impedir a contratação de brancos, mas para promover a igualdade racial dentro dos quadros da empresa, direito esse que é garantido pelo art. 5º da Constituição Federal e que, na prática, precisa ser mais amplamente aplicado.

Retomando o assunto de remuneração voltado para a questão em voga, é impossível não considerar fenômenos histórico culturais para explicar o fato de que, no Brasil, um homem branco que cursou o ensino superior em uma instituição pública ganha como remuneração, em média, R$ 7.892. Já uma mulher negra formada no mesmo tipo de faculdade recebe, em média, R$ 3.047. A diferença permanece alta quando se compara os profissionais do mesmo perfil formados em universidades particulares. Nesse caso, a diferença é 128% maior entre o salário de um homem branco (R$ 6.627) e uma mulher negra (R$ 2.903). Esses dados foram retirados do levantamento “Diferenciais Salariais por Raça e Gênero para Formados em Escolas Públicas ou Privadas” publicado em julho/2020.

O racismo reverso de fato não existe. O que existe é uma diferença entre oportunidades e as chances de alcançá-las em comparação étnica não só no Brasil, como no mundo. O Direito do Trabalho, como um ramo do Direito Social, não poderia deixar de ser afetado por isso. Os salários e remunerações em geral representam sim um disparate entre brancos e negros, mas isso não diz respeito a competência de ambos. Um dos motivos que certamente vem gerado tal discrepância é a existência do racismo estrutural na sociedade, o qual, segundo o portal Brasil de Direitos, representa a “naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro, e que promovem, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial”.

Isso faz com que a sociedade como um todo tenha naturalizado, por exemplo, tamanha diferença entre salários e remunerações de trabalhadores brancos e negros, independentemente dos gêneros. O que ocorre é que episódios como a oferta de vagas exclusivas para negros feita pela Magazine Luiza vem trazido à tona a necessidade de reafirmar que o racismo e as consequências deste não devem ser normalizados, muito menos no mercado de trabalho.

Uma ferramenta que tem sido bastante utilizada nesse intuito é o Compliance Antidiscriminatório, o qual consiste em um conjunto de normas e procedimentos ligados a governança corporativa que visam prevenir, detectar e remediar práticas discriminatórias de qualquer natureza e criar um ambiente de harmonia e respeito à diversidade.

Independente de quem seja o sujeito ativo do racismo, seja ele branco ou negro (conforme trata o artigo do William Douglas e do Irapuã Santana), não se deve retribuir atitudes racistas na mesma moeda. Fato é que a sociedade brasileira é sim racista e, ao admitir isso, o caminho natural deve ser o de promover medidas na tentativa de igualar as oportunidades conferidas as etnias e não fechar falsear essa desigualdade latente. Que instrumento melhor para fazer isso se não o mercado de trabalho?

 

Bibliografia:

https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/09/15/salario-medio-de-homem-branco-supera-em-ate-159-o-de-mulher-negra.htm

https://www.sedep.com.br/artigos/nao-existe-monopolio-sobre-racismo-tampouco-o-racismo-reverso/

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54252093

https://pt.wikipedia.org/wiki/Racismo_reverso

https://www.ibevar.org.br/ranking-ibevar-fia-2020-saiba-quais-sao-as-maiores-empresas-do-varejo-atualmente/

https://www.colab.re/conteudo/racismo-estrutural

https://www.complianceantidiscriminatorio.com/

https://www.conjur.com.br/dl/clique-aqui-ler-decisao-racismo-reverso.pdf

https://mpt.mp.br/pgt/noticias/parecer-acp-dpu-x-magalu-13-10.pdf

 

 

Receba em seu e-mail nossa Newsletter com notícias especializadas